O estado atual da economia é, no mínimo, conturbado, mas parece estar tudo azul para as iniciativas de fidelização no mercado brasileiro. Muito por conta do próprio cenário de crise, que faz o consumidor enxergar pontos e milhas como economia real no fim do mês, o número de cadastros em programas de fidelidade chegou a 107,9 milhões no terceiro trimestre de 2017, segundo a Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (ABEMF). Com a ajuda da transformação digital, que facilitou as operações e abriu novas possibilidades, grandes players varejistas entraram no jogo pela primeira vez e velhos conhecidos do público no tocante à fidelidade ganharam um belo impulso. A situação me parece oportuna para pensar um pouco no futuro dessas empreitadas — inéditas e tradicionais. Porém, antes, uma visitinha rápida ao passado.
Programas de fidelidade não são novidade. Longe disso. Suas origens remontam ao fim do século 18, quando comerciantes americanos distribuíam fichas de cobre que podiam ser trocadas posteriormente por produtos. Daí, partiu-se para os selos e cupons, e chegamos ao primeiro programa moderno, criado em 1981 pela American Airlines para seus “frequent flyers”. Quase 40 anos depois desse marco, muita coisa mudou, mas a lógica ainda é a mesma: marcas premiando a fidelidade de seus consumidores com mais de seus produtos ou equivalentes “paramonetários” (descontos, pontos, etc.). As fichas de cobre agora estão na tela de um dispositivo móvel. Será que ainda faz sentido pensar assim?
À luz da “modernidade líquida”, como chamou Zygmunt Bauman (1925–2017) os tempos em que vivemos, o valor da fidelidade parece se diluir, pelo menos nos termos aos quais estamos acostumados. Se um relacionamento entre duas pessoas pode se encerrar pelo apertar de um botão, o que dizer da conexão entre um consumidor e uma marca? Como dito anteriormente, o universo digital ampliou consideravelmente as oportunidades para as marcas, mas também o fez para o consumidor. Com custos de troca de fornecedores de serviços e produtos cada vez menores, emergência de modalidades pay-per-use e assinatura, sistemas de cashback e o mundo na palma da mão, para o consumidor não basta mais ter sua fidelidade “alugada”. Parece que chegamos a um estágio de maturidade puramente transacional — nos programas ou agrupamentos bem construídos, ao menos — que acabou, por outro lado, escancarando o risco de um esvaziamento emocional. Quando não há problemas com a tecnologia que dá suporte a tudo, muitas vezes o consumidor se depara com uma tentativa de modificação artificial do seu comportamento, para vencer metas que não têm eco na sua realidade e, na hora da contrapartida, com um benefício puramente financeiro e prático ou com um universo de benefícios irrelevantes.
Quando a próxima oscilação econômica, cumprindo o roteiro conhecido, jogar para o alto o poder de compra da população de novo e o elemento “ponta do lápis” perder um pouco a força que carrega no momento atual, acredito que iniciativas que apostem em noções mais contemporâneas vão se sobressair. Fidelidade construída sobre valores de marca, por exemplo. Consumo porque abraço a causa, ou porque a “mecânica” do programa faz sentido no meu momento de vida ou frente àquilo em que acredito. Exemplo disso é a rede americana de farmácias que premia com pontos os clientes que tomam atitudes positivas com relação à saúde, como parar de fumar, medir a pressão diariamente e praticar exercícios.
E para além disso, será que já não chegamos ao ponto de repensar toda essa organização da ideia de fidelidade em programas? Hoje, as marcas que investem com seriedade na jornada do cliente e criam conexões inteligentes, dinâmicas — retroalimentadas por dados — e proveitosas para ambos os lados têm plena condição de criar uma relação em que a fidelidade é matéria-prima, causa e consequência, perpassando tudo a cada interação. Sem precisar de fichas de cobre, selos ou cupons.
*Conteúdo retirado originalmente do Meio&Mensagem.